sexta-feira, 27 de julho de 2012

CRÔNICAS COMPROMETIDAS COM A TUA VIDA

Qualquer reprodução total ou parcial dessa obra, só com autorização do autor.
Apoio cultural: George Barreto e David Fernandes Júnior

Patrocínio: INTERCONTINENTAL (Instrumentos Musicais)

(George Barreto)

Publicação: 1ª Ed. 1989, Imprensa Oficial – Manaus – Amazonas
2ª Ed. 1990 – NACIONAL – Editora e Negócios Ltda
Rua Diego Móia, 907 – Umarizal
Belém – PA

“Não sou daqueles que cortam a árvore antes de ver o seu fruto. Toda árvore produz um fruto. Se for bom, devemos consumi-lo. Se for ruim, cortamos a árvore e queimamos o seu tronco. É por isso que acredito em tudo o que realizo. Acreditei no meu trabalho e confiei na sensibilidade dos leitores".

"Crônicas comprometidas com a tua vida” é um livro de meu passado. Nele há um pouco de tudo, de mim, de você, de nós, da vida, da morte...Sou um sonhador, futurista e gosto de desafios. Tudo o que realizo é pensando no futuro.

Carlos Costa, jornalista, amazonense de Manaus, nascido no signo de aquário.


SUMÁRIO

Apresentação
Saudade de ontem
Dois amores
Dos mistérios do amor
Canção da Lua
Canção do amor
Delírios
A morena e a flor
Nós somos loucos
Eu quero sonhar
Namorada Ideal
Mulheres da Praça
Um roubo santo
Minha amante
A Lei do silêncio
Detetive enganado
O crime do quarto
Temporal no campo
Meu general
Meu amigo, Adeus
Minha empregada, Adeus
Meu pobre Natal
Adeus...meu Uirapuru
Cinzas!
Meu caro Silva
Rei por um dia
Rasga Mortalha
A visagem
As “burras-pretas”
Explicando o poeta

APRESENTAÇÃO

UM SENHOR CRONISTA

  Crônicas comprometidas com a tua vida, de Carlos Costa, reúne episódios, incidentes, reminiscências, reflexões, encontros e desencontros por ele vividos e expressos em relatos curtos, em linguagem nítida, sem excessos de adjetivos e adornos da retórica tradicional, mas de técnica esmerada e respeito aos princípios de clareza, concisão e simplicidade que caracterizam a arte de escrever.
  Carlos Costa é um senhor cronista, leve, que se lê com maior facilidade. Escreve bem, por conseguinte. Que mais se poderia desejar?
  Manaus está presente nestas páginas, não só de forma direta, mas sobretudo indiretamente ou subliminar, na extrema singeleza, prática, de textos que estão vivamente carregados do viver de um povo que ama, sofre, labuta e enfrenta as alegrias e dissabores do cotidiano.
  Observa-se em Carlos Costa um lado romântico, poético. E não poderia deixar de ser. Todos os bons cronistas acabam, um belo dia, poetas. Assim aconteceu com Carlos Drumond de Andrade, Cecília Maireles, Rubem Braga e muitos outros. Tudo indica que o menino nascido em Manaus e criado no Varre-Vento está disposto a seguir-lhe os passos. Não faltam nele as qualificações intelectuais do cronista nato e observa-se em muitos dos seus trabalhos a capacidade de extrair ensinamentos das crises. Com isso até ensina, o que não é atribuição de cronista.
  Crônicas Comprometidas é, como seu próprio autor, um livro despretensioso, com calor humano, romântico, comprometido com a realidade amazônica, revelador o do cotidiano, físico, simbólico e imaginário, saudosista e paradoxal – o poético mesclado ao erótico; a cidade invadida pelo campo; o ser envolto ao não ser; a realidade misturada à fantasia- sensível ( “...onde andas agora? Deixes que eu te busque no infinito. Vem, fecha a janela, a cortina, apaga a luz e te agasalha em meus braços”), e principalmente, agradável.

  O presente volume constitui, além de tudo, um desses atos de salvação para o bem da literatura amazonense, resgatando-se da transitoriedade do jornal, um gênero literário característico da imprensa brasileira.
  Há livros que nascem privilegiados. Esse é o caso de Crônicas Comprometidas, um livro interessante que deve ser lido, debatido e, sobretudo, analisado pelos amantes da boa leitura.
Acredito que, como eu vocês perceberão que o profundo senso de universalidade, transcendência e de permanência do escritor irão tornar suas crônicas invulneráveis à ação erosiva do tempo.

Ierecê Babosa

(Professora do Curso de Relações Públicas da Ufam, poetisa, cronista e mestra).




SAUDADES DE ONTEM


   Porque hoje é sábado, todos se reúnem na casa de alguém para, perguntando um a um e interrogando os que passam, descobrir na casa de quem será a festa, logo mais à noite. Hoje está definido, a festa não será na minha casa, mas na casa do João, que namorou minha irmã mais não namora mais, mas que tem uma irmã bonita que eu já namorou todos os meninos da rua. É fácil saber onde fica a casa do João.
  Definido o local, a notícia corre rápido e até de bairros distantes aparece gente. Da sala principal da casa, foram afastados todos os móveis, que eram poucos, e transportados alguns para o terraço e outros para o quarto. Estava pronto o local da festa para receber os convidados.
  O dono, como é lógico, ficou à porta, recebendo os que eram convidados e os que se convidaram porque conheciam alguém, que conhecia outro alguém, que era amigo de um amigo do dono da casa. Ao final, todos entravam, brincavam, dançavam, namoravam e terminavam se conhecendo mesmo.
  Eu, tímido, ficava só olhando e ouvindo as músicas de Pepino de Capri, Y Santo California, Gilbert, Nazareth, Michael Jacksson, com seus 10 anos de menino prodígio cantando “Beem”e tantos outros sucessos bons que hoje não se escuta mais. A irmã do João, a única pessoa que interessava praticamente a todos os que lá estavam, dançava com outro e eu não tinha coragem de me chegar.
  E a festa entrava noite à dentro, cada vez chegando mais gente. Em frente à casa, muitos jovens olhavam para dentro para ver se havia muitas garotas. Festa sem garotas não era festa. Também tentavam descobrir onde seria a festa da semana seguinte, na casa de quem, e se haveria muitas meninas.
  O João, dono de tudo, deixou dar onze horas e parou o som da vitrola Nivico. Ninguém entendeu nada. De repente, entrou na sua a sua mãe, dizendo que estava na hora. Na hora de quê, de terminar a festa? Foi o que todos se perguntaram ao mesmo tempo. Não, não era de terminar a festa, mas de cantar parabéns, afinal, havia um aniversariante na festa e era o próprio João.
  O estranho é que ninguém sabia que ele estava aniversariando. Todos pensavam que aquela era mais uma simples brincadeira de final de semana, como era comum entre todos os jovens. Muitos esboçaram um sorriso e cantaram parabéns a você. Outros se encostaram pelos cantos, confidenciando alguma coisa nos ouvidos das garotas. Eu fiquei parado, esperando um tempo para me chegar à irmã do João. Veio parabéns e todos cantaram, recomeçando a festa em seguida, que só terminou depois das duas da manhã, um horário considerado já muito tarde para todos os jovens daquela época.
  Terminada a festa, desci a rua acompanhada de um grupo de rapazes, ouvindo atentamente o falatório das conquistas. O que menos falava, dizia que havia tocado nas mãos de uma garota. Outros iam mais além e apostavam que tinham beijado fulana, irmã de outra fulana, que namorava com fulano. Já outro havia descoberto que uma garota não namorava mais com aquele rapaz e por aí afora.  Eu, calado, só pensava mesmo no dia em que eu poderia me chegar à irmã do João, que namorava minha irmã. Sabia que, em primeiro lugar, eu teria que aprender a dançar, coisa que eu considerava muito difícil. Mas, afora isso, a festa tinha sido ótima, afinal, eu pude ver, mesmo de longe, a irmã do João!




DOIS AMORES


  Eu conheci Claudine no colégio público, tinha por aí meus nove anos e ela uma mais. Era a Escola “Adalberto Valle” e ficava próximo a casa de minha madrinha Natércia, no Morro da Liberdade. Nesse tempo, a gente usava calças curtas e ela saia longa e se deliciava com as cores do lápis “Fabber”.
  Claudine foi, com certeza, minha primeira namorada, embora ela nunca tenha certeza disso. Cheguei a ir a sua casa, quando ela estava doente, mas só para vê-la. Tive uma sensação estranha ao entrar em seu quarto; ela só de camisola. Comigo estavam outros colegas de classe, que também nutriam o mesmo sentimento que eu por Claudine.
  No princípio não dei muita atenção a ela, por causa de outras meninas que eu paquerava sem saber ao certo o que pretendia. Uma delas me chamava de lindo, essas coisas de criança e eu acreditava. Outra chegou a dar-me um beijo – o primeiro que recebi na vida – durante a hora do recreio. Pensei que estivesse apaixonado pelas duas.Claudine, ao contraio, era discreta. Fazia composições lindas e tinha uma letra de chamar a atenção, bem certinha, sem falhas. Era o modelo de classe e a musa dos meninos. Comecei a amá-la porque um dia, no portão da escola, consegui tocar em suas mãos finas, brancas, bem cuidadas. Senti um calor forte. Nunca mais esqueci essa sensação.


  Estava apaixonado com certeza, mas ela não sabia disso. Desde aquele dia, esqueci as outras meninas e só queria ver Claudine. Fazia tudo para estar perto dela. Até de carteira eu mudei. Ela passou a ser a coisa mais importante para mim, mas nunca tive coragem de falar-lhe algo além do estritamente necessário, deveres de casa, dúvidas em matemática e coisas assim.
  Durante muito tempo, formamos um par perfeito, até o dia em que Claudine mudou de Colégio, sem saber que eu a amava tanto.
Nunca mais coloquei minha mão em sua mão.



A OUTRA

  Dalva era diferente, morava na Praça 14 de Janeiro e tinha 15 anos, um a menos que eu. Andava com elegância, balançando seu belo corpo e despertando suspiros aos jovens. Eu, sinceramente, não me achava merecedor dela e, de certo modo, até hoje me pergunto por que Dalva me escolheu entre tantos rapazes que estavam na festa dos seus quinze anos.

  Eu tinha um misto de vergonha e orgulho de sair com ela na rua. Vergonha porque os outros rapazes a olhavam com cobiça e alguns até dirigiam-lhe gracejos. Ficava cedo de raiva ma não fazia nada porque nunca fui de briga e era muito franzino. Dalva foi, com certeza, a garota mais importante. Tinha raiva do meu cabelo longo e não gostava de minha barba em seu início, que a ambos chamava de tétrica. Talvez por isso nunca a tirei, até hoje. Meu namoro com Dalva foi bonito.
  Estava animado, apesar de tudo. Com pouco dinheiro, sem carro, fazia de tudo para me apresentar bem e o esforço era recompensado. Apanhar Dalva no colégio era o que eu mais gostava de fazer e ficava furioso quando isso não era possível.

  Só sei que, como cheguei me fui. Um ano depois, no dia do seu aniversário, cheguei todo animado. Ela estava dançando com outro um rapaz e, ao ver-me, foi logo ao portão:
- Eu queria te apresentar meu novo namorado. O nome dele é...
  Entalei, fiquei mudo e senti que alguma coisa estava para acontecer. Voltei, fiquei na parada do ônibus e, enquanto o esperava, lágrimas desciam. Ah, Dalva, porque você foi fazer uma coisa dessas comigo e me desprover do tato de seus cabelos loiros, de sua boca sensual e de sua pele branca como a lua?





CANÇÃO DOS AMORES

  Ah, doce senhora, hoje acordei com desejo de fazer poesias, falar bobagens, correr ao vento, tomar água de coco e chamar você de meu amor, de dois amores, um da vida e outro da morte, um que vai e outro que fica.
  Há dentro de mim dois amores, um de dentro e outro de fora, um que ofereço e outro que eu fico comigo, dentro do peito, como um segredo, bem guardado. Há um amor que é como a onda vem e vai, bate e molha e, outro, que mansamente vai desaguar no rio calmo, como o leito da mulher amada.
  Ah, doce senhora, hoje eu quero fazer poesias, falar de você, de seus beijos, de seus desejos, de suas brigas, de suas fantasias, poesias. Você não entende ninguém entende como eu posso ter dois amores. Um é alegre, brinca, é pequenino, corre, sonha e tem futuro. O outro está guardado, dentro do peito: é só meu.
  Ah, doce senhora, vem brincar de falar bobagem, brinquemos de inventar cirandas, de se esconder nas sombras e chorar de dia e de sorrir em velórios. Faz tudo isso porque há realmente um amor dentro de outro amor, um amor de fome, que consome, e um amor que ama e ele se chama você.
  Fica do meu lado esquerdo, ou do direito, ou dos dois, como um mundo onde cabe tudo, cabe a todos e ninguém se importa. Nesse amor que não é amor, é mais do que amor, há isso sim, a certeza de casebres bonitos e não barracões de lama e zinco, cheirando a imundície.
  Ah, senhora, como é doce sonhar, falar de tudo, dizer ao mundo que existem dois amores. Como seria bom, senhora, se todos pudessem, como eu, ter dois amores. Um que abraça e chora e outro que fica guardado, dentro do peito, escondido, que se amarga, mas que suporta, existe, persiste e resiste.
  São centenas de coisas boas a abrigar milhares de coisas boas cuja única coisa ruim é a incompreensão dos outros. Como é difícil! São milhares de olhos a me olhar e milhares de luzes a me seguir, tentando aprender o que eu já aprendi no pensamento de antigos deuses esquecidos.
  É o amor dentro do amor, amor de vida, amor dos outros, amor dos homens. É a música, os violões contraponteando, a batucada, a respiração, às vezes, a voz e estalar aos ouvidos, enfim, tudo.
  No meio do meu amor primeiro está meu amor segundo, mas os dois são meus e não os divido. Um amor, doce senhora, sou eu mesmo, com meus defeitos, minhas virtudes, meu cabelo grande e minha barba sempre por fazer. O outro é você e mais ninguém...Não há espaço para um terceiro amor...

Ah, senhora, como é bom viver dois amores...!



DOS MISTÉRIOS DO AMOR


Tentei um dia, escrever os mistérios do amor.

Às quatro horas da manhã a angústia me invade e, como louco, minha mente fica a te buscar...

  Eu a via ao meu lado, na rua, em qualquer lugar. Não havia lugar onde ela não pudesse estar que eu não estivesse ao seu lado, olhando-a, amando-a. A ânsia de tê-la era tanta e forte que prendê-la em meus braços era o que eu mais queria. Era o que mais me faltava. Ela.

...tateio o travesseiro e rolo na cama, sei que não estás comigo e isso me deprime ainda mais...seria tão bom ter-te agora!

Minhas buscas nem sempre eram em vão. De tão perfeita e de tão natural, por poucos minutos eu a tinha. Eram minutos eternos e íntimos e nós nos dávamos por inteiro...Ah, que noite triste! Se não estás comigo, isso é um sonho!

Minha luta desesperada revela uma verdade extrema daquela falta absoluto de tudo: a presença dela, dos beijos, dos abraços. Entre eu e ela existe uma diferença, uma barreira, um tempo transponível graças às nossas lutas, nossas guerras. Era eu aqui e ela lá, sozinha, pensando em mim. Ela também era triste...
...desfaço-me em lágrimas e delas nascem as estrelas, a lua, a noite...Dos mistérios do amor, tudo era ela!
Ah, como era gostoso lembrá-la! Uma mulher me olhando, acariciando, me vendo no fundo dos meus olhos e dos seus olhos brotando o amor...
...alguém me tem neste momento. À noite. Com olhos imóveis ela me observa. Tenho certeza. Como eu, ela também me quer. Ah, como é triste essa distância...!
E fora a única verdade conseguida. Uma mulher também me amava, de qualquer maneira, em qualquer lugar. Esse amor que adormece os homens e os faz triste, resiste quando há vontade. Só a certeza de que ele é verdadeiro é suficiente para que a luta continue, não importando as barreiras. Ao poeta mais pobre não seria dado o direito de tê-lo, possuí-lo. O poeta, ah, o poeta...! Ele é louco porque a musa também o é. Ela olha pelo espelho d’água e vê meu rosto dentro dele. Ah, que certeza...!
...veio a aurora, entretanto, eu te diviso, ainda tímida, inexperiente entre meus braços, tremendo de medo, talvez.
Só eu e tu nos amamos a noite toda, sob um único lençol. Eu aqui, sozinho, e tu aí, pensando em nós dois.
...não é dado ao poeta mais pobre entender a força desse nosso amor.
O sol estava alto. Fui ao banheiro. Lavei o rosto e deixei sair lágrima que teimava em permanecer em meus olhos. E aí, eu a vi, mais uma vez.



CANÇÃO DA LUA


  Um dia de sol fraco, igual àqueles que parecem não ter fim, quando você se sente prisioneiro dentro de sua própria casa, o telefone não funciona, a namorada não pensa em você, o carteiro não entrega a carta, você não vê o sol. Foi um dia assim que eu pensei em escrever um poema. E por que um poema? Talvez porque eu não tenha compromisso com ninguém e, no poema, eu posso dizer quantas bobagens quiser sem que ninguém me censure.
  E foi assim. E era assim. Se você pedisse um poema, naquele dia, eu o tiraria de minha cabeça sem usar a máquina...
“...e o sangue escorria pela sarjeta/ a sarjeta se fazia em sangue/ e meu coração chorava/ lágrimas de sarjetas/ lágrimas de sangue”.
Está pronto o poema. Não gostou? Tudo bem. Eu escrevo outro.
“...lua, minha doce lua/ o que seria de ti se não fossem os poetas para te admirar/ E o que seria da minha poesia se não existisses?/ Ah, lua, minha amada, minha amante/ desejaria um nome/um código/um nome que só nós dois entendêssemos/Ah, lua, e onde eu ti vir gritarei teu nome/ Luana!/ Ah, Luana, és a lua que clareia os meus dias!”/

  E o danado do sol não aprece! Se aparecesse, meu poema seria alegre. Deixaria meu corpo exposto e apanharia em minhas fibras todos os seus raios. Talvez descendo a Avenida Eduardo Ribeiro eu encontrasse alguém. Esse alguém me convidaria para tomar um chope e eu, na mesa do bar, escreveria outro poema.
“...nas curvas da noite correm meus pensamentos/sem rumo/batem em portas erradas/acordam pessoas e terminam/ quando na esquina da rua encontram teus pensamentos./Rolamos na cama./Ficamos acordados/choramos baixinho./Nossas noites são assim/porque nas curvas das ruas/pelas curvas da noite/ nossos pensamentos passeiam de mãos dadas/ enquanto nós dois rolamos na cama, e pensamos no futuro...”/
  Ah, como sinto fala de alguém para conversar, de um amigo, de um inimigo. Se o dia fosse outro e eu não me sentisse prisioneiro dentro de minha casa, com certeza procuraria o bar mais próximo. Tomaria muitas cervejas, ouviria muitas músicas e no final, deixaria mais um poema, n’algum lugar.
“...estou só, sozinho/ e a música toca/uma lágrima escorre/vai ao chão e ruma pelo asfalto/ e o sol é forte/ a lágrima desaparece./
  Ah, lua, só você mesmo para me fazer feliz! Se não fosse você, minha lua, minha Luana, seria mais triste o meu viver como estou por não te ter. Ah, minha lua, não sou ninguém sem você.



CANÇÃO DO AMOR


  São doces os caminhos que levam o homem de volta aos braços da mulher amada. Não a amada de ontem, cujos saborosos momentos se perderam nas nuvens do passado, buscando em algum lugar a força e a sustentação para o insustentável; mas a uma mais íntima – uma cuja boca não pronuncia outro nome que não seja o seu e ele se transforma em um menino, ansioso para abraçá-la, beijá-la, tocá-la; uma onde nasceu, cresceu e vive a certeza de ser amada, plantar canções, colher filhos e, ao sabor dos ventos, balançar em redes os sentimentos.
  Sim, são doces os caminhos do homem que volta a sua amada, e tão mais doces e curtos são esses caminhos se lhes restar lembranças de algum instante que teve, viu, sentiu e explorou em braços e bocas de outras amadas.
  Doces também são as amarguras e os sofrimentos vividos ao lado da mulher amada. Tudo que é difícil fica fácil, tudo que parece impossível se torna realizável. O coração bate mais forte; a amada sempre disposta a compreender, amar e perdoar.
  Em algum lugar, distante ou perto, os olhos da mulher amada os acompanham; se não os conduz sempre pelos melhores caminhos, ao menos os auxiliam nos momentos de escuridão. Se apagados ficam os olhos da mulher amada, caminhos outros podem ser percorridos difícil fica o retorno.
  Ciente e doce volta o homem para os braços da mulher amada, cheia de paixões. Ele não vê ruas, atravessa avenidas, cruzas praças, passa os abismos e não sente obstáculos. Se for preciso, flutua, pula edifícios, passa pela fogueira e sempre chega aos braços de seus sonhos.
  Ah, como é criança o homem apaixonado, capaz de se tornar dócil e brincar com os brinquedos do seu coração. Não vê o amanhã, não pensa no depois e se estira no tempo para sempre estar ao lado da mulher amada.

  Feliz o homem que decide voltar aos braços da mulher amada, mesmo que não seja a primeira; porque logo vem a realidade e o homem que ama também chora, mesmo que esteja nos braços de outra mulher. Adorável é o pretexto noturno, único caminho para as fugas rumo aos braços da mulher amada.

  Do amor à mulher amada, o homem sempre guardará lembranças em forma de profundas raízes, onde se plantou uma grande árvore que deu frutos. À amada, o homem guardará um lugar para sempre e nele estará a sua imagem, dentro do coração, capaz de refletir o futuro e lembrar que um dia foi doce o caminho de volta para os braços da mulher amada.



DELÍRIOS


  Se estivesse apaixonada por mim, eu atravessaria a avenida mais movimentada e desafiaria todos os carros para um duelo, pularia do edifício mais alto e não morreria no chão, porque não morre o homem que tem certeza de ser amado. Se você estivesse apaixonada por mim, eu enxeria sua casa de flores, lavaria sua piscina, tomaria toda a bebida de seu bar, e ainda e, ainda por cima, deitaria em seus braços sem me importar quem estivesse olhando.
  Talvez me transformasse em um inventor e subisse de foguete até a lua só para tocá-la, trazendo de lá uma pequena amostra de sua beleza. Depositaria tudo o que tenho em seus pés, inclusive todos os meus débitos – que não são poucos. Mas, ah, que tristeza: não tenho certeza se você está apaixonada por mim.

  Diz maninha, diz só uma vez, bem baixinho, se você está apaixonada por mim! Toca-me em seus braços, me beija bem forte e, se não estiver apaixonada por mim, me deixa na primeira esquina, no primeiro bar, na primeira sarjeta. Não importa, nada importa se ao menos já tiver me dado um beijo. Saberei que pode não estar apaixonada por mim, mas pelo menos me deixou roubar uma pequena lembrança.

  O que devo fazer, então, para saber se você está apaixonada por mim? Será que devo correr até cansar, só para depois ser recolhido por você e, como um gatinho manhoso, descansar meu cansaço em seu colo? Ou será que devo nadar em sua piscina, beber água com cloro e depois tossir para ser acudido?

  Não. Sei que nada disso é útil. Ah, maninha, como devo saber se você está apaixonada por mim? Mas, olhe, se você estivesse apaixonada por mim, não me importaria em ser só seu. Nem ligaria quando você me pedisse que eu ficasse em casa. Também nada diria se você virasse os beijos e, baixinho, soluçasse só para provar que está apaixonada por mim. Nesta hora, nada diria. Tomaria você em meus braços e correria pela rua mais próxima, só para mostrar aos homens quanto nós estamos apaixonados.

  Se você estivesse apaixonada por mim, me despiria de todas as roupas e me lançaria todo aos seus braços, afogaria você de beijos e acariciaria seus cabelos, tomaria todo o seu corpo frágil e o deitaria na cama mais próxima. Depois me sentaria no primeiro sofá para admirar você, sem tocá-la, enquanto dois corpos percorreriam o quarto com o gosto feliz de champanhe. Ai, sim, saberia que você está apaixonada por mim.

  Ah, mas como é duro viver na incerteza. Como saberei se você está apaixonada por mim se nem perto de você tenho coragem de chegar? Como posso sonhar com você em meus braços se você nem me conhece?

  Bem, não importa, o que importa é que estou apaixonado por você. Por isso, vivo sonhando com o futuro...



A MORENA E A FLOR


  De mais importante que havia na cidade depois do prédio de vinte andares construído na avenida principal, que abrigava a maioria dos escritórios e consultórios executivos, era a morena Mariana, que desfilava a graça de seus poucos anos em frente ao Hotel que eu morava. Jamais perguntei sua idade, muito menos o que fazia ali, me provocando, dia e noite, noite e dia. De certo que eu sabia, mas fazia que não quisesse entender.

  Na realidade, para as pessoas do lugar a linda morena pouco ou quase nada representava. Ela não estava nos cartões postais como estava o prédio de vinte andares, construído por algum louco construtor e projetado por um engenheiro que não entendia nada do que era belo. Ele simplesmente projetou o prédio de forma tal eu o mais belo – uma pequena rosa que nascia no asfalto, bem a sua frente, não podia ser vista.

  No dia que encontrei aquela teimosa rosa querendo existir entre os restos do material de construção deixados pela inoperância – talvez, da prefeitura ou a irresponsabilidade da construtora que construiu o prédio, sorri de alegria e esqueci, por longos momentos, a intrigante e desfilante Mariana. Como uma rosa poderia existir entre restos de um prédio de vinte andares?

  Durante vários dias, como que imitando as pessoas do lugar, caminhei pela rua principal e parei em frente ao prédio. Mas, ao contrário os moradores da cidade, eu não olhava a beleza da arquitetura, não subia em um dos quatro elevadores do prédio e nem ficava olhando a cidade do terraço, com a sensação de que estivesse dentro de um avião. Não. Eu somente olhava a minha rosa. Tinha-a adotado para mim, no exato momento em que a vi pela primeira vez e, com ela, estabeleci uma relação de amizade.

  De noite, costumava passar por lá, só para vê-la; como se vê diariamente uma namorada. Minha preocupação era com o crescimento que era enorme e todos os dias eu me sentia mais feliz com o descaso da prefeitura do lugar para com o lixo acumulado nas ruas, motivo de protestos do único jornal existente e de pronunciamentos violentos dos vereadores. Eu era o único – ao que parece, a apoiar plenamente a falta de iniciativa do prefeito. Enquanto ele nada fizesse para retirar o lixo, minha rosa continuaria existindo.

  Depois da rosa, minha companheira constante, somente a morena Mariana me interessava. Ela teimava em desfilar em frente ao meu hotel, ora sozinha, ora com um noivo, um cara que não tinha nada de simpático e que não entendia nada de flores. De vez em quando, chegava a pensar que Mariana sabia de meu namoro com a rosa, por isso, tentava-me. Talvez fosse verdade. Eu até comparava minha rosa com a morena Mariana. Uma teimosamente buscava a luz do sol, entre os restos de material de construção, escondida para existir; a outra buscava a mim, entre as calçadas de meu hotel, às claras. Era só isso.

  Minha rotina na cidade continuou por mais alguns dias, até que acordei pela manhã chocado com a notícia que li no jornal. O prefeito, aborrecido com tantas críticas, decidiu retirar o lixo da cidade. Foi um desespero para mim e uma alegria geral para todos. Como se fosse ecologista que nunca fui, corri rua à baixo e parei em frente ao prédio de vinte andares. Era tarde demais. Minha rosa tinha sido assassinada e só eu sabia disso. Foi triste, muito triste perder minha amiga, de uma forma trágica.

  Mais trágico ainda foi voltar ao hotel e encontrar na portaria um convite para o casamento da morena Mariana, naquele mesmo dia.

Não fiquei mais na cidade. Não havia motivos!




NÓS SOMOS LOUCOS


  Ficar em casa, um dia, uma noite, sozinho, em total silêncio, esperando o tempo passar, sem se preocupar com o que acontece lá fora e sem tomar conhecimento do mundo, conversando com seus próprios pensamentos e imaginando ela chegar, linda, toda de branco, caindo em meus braços, boca sensual a beijá-lo, mãos delicadas a acariciá-lo e voz meiga sussurrando palavras que há muito você não houve. Não ligar o televisor, esquecer-se do rádio; deixar todos os locutores falando sozinhos na ânsia de tê-lo como ouvinte ou pensando que você está a escutar aquela música chata que costumam classificar como da parada. Deixar que somente o barulho do vento entre em seu quarto neste momento de total penumbra e você, deitado na cama, estirado, olhando para o teto, um teto que parece o céu, todo lindo, sem uma mancha. Beneficiar-se do silêncio, que prova a sua própria existência e tê-lo como único companheiro, deixando-o caminhar por toda a casa, abrindo portas, chegando a cozinha e fazendo de conta que seu é companheiro mais fiel. Diante de seu único amigo, pensando na sua doce e linda musa, Luana, sorri dos psiquiatras que falam em alienação; não se preocupe se pensarem que você está maluco. Você não está pirado. Somente você se decidiu a amar e ser amado em silêncio. 

  Tome todos os comprimidos para dormir e os jogue pelo vaso, puxe a descarga e os veja se perderem. Tire da instante todos os livros, leia-os todos e os deixe se forem considerados chatos. Reveja as dedicatórias e perca tempo lendo o livro de sua poesia preferida. Sinta você todo por inteiro e a casa em partícula. Se desejar, olhe o sol, a lua, as estrelas, a rua, o vento, mais fique sempre sozinho. Viaje em fotografias e cartões postais antigos, imagine-a em cada uma das fotos, a seu lado, naqueles cantos que você nunca foi mais gostaria de ir, tomando banho de cachoeira, ouvindo o canto dos pássaros, sorrindo de qualquer coisa; goste mais da comida que come e não reclame das dificuldades. Sinta no peito o gosto da vida e sinta-se feliz por não estar sendo regulado por nada, por ninguém. É a vida que começa a lhe invadir e você sozinho, sentindo o tic-tac do relógio passando as horas. Seus livros estão jogados, seus remédios já se foram, a televisão está desligada, o rádio não se comunica os jornais não foram apanhados. Você está só e é assim que tem que ser. Nesse momento, se sentir vontade de chorar não prenda as lágrimas. Se tiver vontade de escrever, escreva. Grite se sentir gosto; toque nas paredes e sinta tudo em sua volta. Depois deite novamente na cama e relaxe. Seus sonhos virão e você dormirá tranquilo. Ela virá, você sentirá por inteira, deitada ao seu lado, tocando seu corpo. Você sentirá seus beijos, seu perfume e tudo o mais que ela lhe oferecer. Aí, no dia seguinte, quando você acordar, tenha certeza de uma coisa: você não estava delirando no dia anterior; você estava somente amando porque quem ama intensamente tem um pouquinho de louco. Eu sou louco!



EU QUERO SONHAR


  Dormi mal; acordei pior. Era como se faltasse alguma coisa, algum pedaço, uma simples voz, talvez... Tateei no escuro, andei pela casa e não consegui descobrir o que estava acontecendo. Ligar e desligar o televisor virou uma rotina e o frio do ar condicionado passou a incomodar. Eu queria dormir, sonhar, sonhar com o céu, tudo azul, cheio de estrelas, cheio de você.

  Talvez, quem sabe, eu encontrarei você, fixada entre todas as estrelas, sorrindo para mim, jogando seu charme, ou você talvez fosse a própria lua cravada no céu, cheia, bem cheia – juro que morreria de ciúmes. Você lá e eu aqui, pensando em tudo o que poderíamos fazer se ainda estivéssemos juntos.

  Ah, como é ingrata essa noite que não me deixa sonhar, que não me deixa dormir. Nunca eu me senti assim, com tanta vontade, com tanta inveja de você, tão calma, tão serena, tão admirada por tantos poetas...Será que eles, como eu, também estão assim, sem dormir?

  Eu queria sonhar como as crianças sonham. Sentir o eu corpo, passar as mãos pelos seus cabelos e sentir raiva ao saber que, sendo você a lua, já foi pisada em seu corpo pelos tripulantes da Lunik-9.

  Ingratidão essa dos soviéticos! Desde aquele dia você não é mais moça, mais ainda é linda. Nunca mais nós poderemos sonhar como se fôssemos os primeiros e únicos. Nunca mais teremos o silêncio da noite para os nossos colóquios amorosos, eu e você, só nós dois, rodeados de estrelas.

  De que adianta pensar em tudo isso se eu não posso dormir, se eu não posso sonhar De que adianta concluir que o mundo é azul se até o barulho do ar condicionado não me deixa dormir? De nada adiantam os pensamentos se nós nunca estivermos perto um do outro! É sempre você lá no céu e eu na terra, sonhando feito criança tola! É, mas hoje, nem sonhar eu estou podendo, nem pensar eu estou pensando...

  Sei que o mundo é azul e por isso eu posso sonhar acordado, na paz de sua lembrança. Sonhar seu corpo nu clareando o sonho de todos os poetas. Isso me deixa com ciúmes, é verdade, mas nada posso fazer porque desde que ela nasce havia uma infinidade de pessoas a admira o seu corpo.

  Você fica lá, mostrando os contornos dos seus belos seios para a minha contemplação, como faria uma menina pervertida com um pobre condenado, apenas para aumentar seu sofrimento, levá-lo aos confins da loucura. Eu se pudesse dormir, sonharia com você deitada na varanda de minha casa, balançando seu corpo na minha rede, me fazendo mil juras de amor para sempre. A sua voz seria sussurrante e só meus ouvidos escutariam.

  Ficaríamos a sós, eu apagaria a luz, ficaríamos caladinhos, falaríamos muitas bobagens, encostaríamos nossos rostos e eu pensaria, por fim, que tinha sido o mais íntimo naquela noite... Se adormecesse depois não teria importância, afinal, você se iria logo aos primeiros raios do sol!

  Pobre de mim, que fazer? Você estaria lá no céu e eu aqui na terra, olhando na cama sem poder dormir. Sim, senti ciúmes de mim, senti ciúmes porque agora, em algum lugar, poderíamos estar juntos e eu tenho certeza que você também quer isso...Mas o que fazer se eu não posso dormir e se não posso sonhar...?

Dormi mal; acordei pior...



A NAMORADA IDEAL


  A namorada ideal não precisa ser bela; basta ser bonito o suficiente para ser diferente das outras. Não precisa saber amar; é necessário ser inteligente, com um poder de percepção aflorado o suficiente para transformar momentos difíceis em e, fome do corpo e o sabor de seus beijos, a sede da boca. A namorada não precisa ser virgem, nem ser a primeira. É necessário que saiba se entregar por inteiro, for criança e souber chorar, ser mulher e saber ser mãe.

  Ela não precisa saber que eu sei que ela não sabe nada. Também não precisa saber muito de mim, nem eu dela. É somente preciso que nos momentos de amor sejamos um só, corpo, alma, pensamentos, sussurros e beijos. Ela precisa saber acariciar meus cabelos longos e me olhar por inteiro e, se tiver profissão, não precisa dizer o que faz, nem com quem conversa porque eu sou ciumento.

  A namorada ideal deve sorrir nos momentos difíceis e saber chorar nos momentos de desespero, sem se fazer notar por ninguém. E assim, a lição deve ser seguida pelo resto da vida. Se o namorado não for sincero, não precisa se desesperar e nem criar escândalo. É parar, pensar um pouco, respirar fundo e ir à luta, reconquistando seu espaço perdido. Se assim não for suficiente, é só arranjar outro namorado porque homem nenhum admite o desprez

  Se for bonita demais, não precisa ficar provocando. Se não se achar bonita, é deixar que a inteligência se sobressaia e não se deixar massacrar pelo machismo masculino. É preferível viver ao lado de quem pensa por si mesmo do quem se permite ser usada como objeto.

  A verdadeira namorada precisa ser forte para não se deixar envolver no momento da separação, mas se não for, não é necessário forçar e tentar mostrar o que não tem. O certo é assumir a fraqueza e chorar baixinho, deixando a lágrima lave seu próprio coração para ter forças para continuar lutando.

  Nos momentos de amor, a namorada não precisa declarar todo o seu amor eterno. É suficiente amar e provar esse amor através de suas atitudes. Mas é preciso lembrar, sempre, que o ato de fazer amor, unindo dois corpos ofegantes, não significa que o verdadeiro amor existe. Muitas vezes é preciso buscar o amor em pequenas coisas, como na rosa que eu nunca plantei, nas carias que eu nunca fiz, mas palavras que nunca pronunciei. Se for capaz de me entender assim, então poderá ser verdadeiramente a mina namorada ideal...!



MULHERES DA PRAÇA


  Mulheres da praça, eu gostaria de saber o que vocês fazem o onde ficam os filhos que vocês fazem; talvez sozinhos perdidos no mundo ou dentro de ninguém. Eu gostaria de trocar idéias e perder horas e horas acompanhando vocês com os olhos e, quem sabe, pedir emprestado um minuto de atenção.

  As mulheres da praça parecem despreocupadas, cruzando as pernas e mostrando tudo o que não têm mais para mostrar, deixando aos olhares curiosos dos homens das praças as suas pernas quase sempre marcadas, seus lábios sempre recheados de batons e seus cabelos desalinhados do último encontro.

  Umas passeiam discretamente e outras inventam de inventar que estão inventando alguma coisa mais, no fundo, eu sei, elas estão é me observando a observá-las. Aparentemente são meninas as mulheres da praça. Conserva no rosto um tipo de sorriso que não é um sorriso e se confundem com as árvores da praça.

  São livres e libertas as mulheres da praça e parecem ser a inocência do mundo, perdidas dentro do mundo e presas dentro de si, quando não estão presas por outros motivos. Há homens que as ignoram, outros que se aproximam e outros que as usam.

  Ah, como é difícil entender as mulheres da praça, que se confundem com o canto de um pássaro teimoso que todos os dias canta para o meu sorriso. Elas não têm passado e, se têm, preferem escondê-lo. Também não têm futuro, nem elas e nem os filhos que elas fazem.

  Umas nunca abriram os olhos, nem para beijar, porque não tiveram tempo; outras só para chorar, e mais outras, só para beber e fumar. Como eu, elas nunca sentiram a força do verdadeiro amor, não se entregaram por inteiro, não possuem cheiro, são diferentes e quase não têm nome.

  Muitas trazem o ventre inchado com as entranhas completamente vazias. Outras trazem o ventre vazio porque houve um despejo, mas não importa. Elas não têm nome, por isso as chamo de as “mulheres da praça”, e seus filhos não têm pai e eu os chamo de “filhos do mundo”, nascidos para viver, sofrer e morrer.

  Meninas sozinhas, perdidas na minha praça e dentro dos homens, elas são estranhas e parece que não dormem. Eu, ao acordar, já as vejo sentadas, umas procurando dar destaque para as pernas, outras para a cor da calcinha que usam por baixo como uma roupa transparente e outras preferem esperar o sol, como se ele lhes dissesse que as ama profundamente.

  O que fizeram as mulheres da praça? Por onde foram? Com quem estavam? Sonolentas, elas se confundem entre as árvores da minha praça, caminham sem rumo, conversam coisas que eu não entendo, contam dinheiro e sonham com um amanhã- se que elas têm tempo para sonhar. E eu, sentado ao longe, as observo atentamente, sem entender de onde vieram as mulheres de minha praça.

  Triste, teimoso, um passarinho canta para alegrar mais um dia das mulheres de minha praça, mas elas não escutam o seu canto e ele se vai, como dando um adeus àquelas que não lhe entenderam, como não as entendem as pessoas que passam pela minha praça, olhando-as como os olhos de reprovação. Mulheres da minha praça!



UM ROUBO SANTO


  Estava aborrecido em seu quarto de dois por dois, com um banheiro no fim do corredor. Era um quarto horrível, mal-cheiroso, sem muita luminosidade. A janela abria para a rua, mas não adiantava abri-la. A poluição era muito grande e havia a poeira que subia a cada vez que passava um carro. De onde estava, podia se observar crianças correndo, ratos entrando nos buracos, mulheres rodando suas bolsas, expondo seus corpos e homens buscando as poucas virgens entre aquelas crianças. Havia insetos e, por isso, ele estava aborrecido.

  Com a janela aberta, havia ainda o barulho chato vindo de um bar que funcionava do outro lado da rua. Lá, tocavam todo tipo de música, sempre em alto volume, enquanto homens e mulheres, minuto a minuto, entravam e saíam de quartos que havia nos fundos.

  Dentro do quarto de dois por dois, pontas de cigarros rolavam pelo chão, enquanto no final do corredor o banheiro exalava mau cheiro, talvez porque algum pobre coitado tenha se esquecido de puxar a descarga. A roupa estava jogada pelo chão, algumas sujas, outras limpas, e foi difícil encontrar uma que tivesse condições de ser usada.

  O sapato, onde está o sapato? Encontrou-o dentro do lixeiro. Acho que foi brincadeira da arrumadeira. E as meias? Saiu sem elas, só com calça, camisa e sapatos. Apanhou uma carteira de cigarros, colocou-a no bolso e desceu as escadas, tropeçou com um hóspede totalmente bêbado e saiu à rua. Antes, olhou para o bar e sentiu vontade de entrar mais desistiu.

  Desceu rua abaixo e dobrou a esquerda, chegando a uma praça cheia de mulheres, que eram mulheres esperando mulheres. Lentamente, olhando para tudo e todos, como que admirando tudo aquilo que estava acostumado a ver todos os dias, desceu mais a rua e andou a toa por alguns minutos. Seus pensamentos estavam confusos. O diabo do quarto de dois por dois não lhe saia da cabeça. Acendeu um cigarro, soltou uma bofarada e sentiu um rápido frio.

  Não disse nada. Caminhou e parou para ver um grande prédio que, gulosamente engolia toda a vista do outro lado. Sabia que havia alguma coisa do outro lado e resolveu caminhar mais. Novamente parou, jogou o cigarro e entrou. Não ficou espantado.

  Tirou os sapatos e os deixou à porta, caminhou alguns passos e se deteve à frente da imagem de Nossa Senhora. Era isso, era isso que lhe faltava para tapar o vazio do quarto de dois por dois. Olhou para os lados, não viu ninguém.

  Hoje, em seu quarto de dois por dois, a imagem de Nossa Senhora, roubada da igreja, descansa na cabeceira de sua cama. Leu no jornal sobre um roubo. Não ficou com remorso. O padre, coitado, acusou uma quadrilha organizada como sendo a responsável pelo roubo.

  Fez o sinal da cruz e foi dormir mais tranqüilo naquela noite. Não estava mai sozinho ou angustiado pois tinha praticado um “roubo santo”.



MINHA AMANTE

(crônica premiada)

  O nosso reencontro foi tenso, muito tenso, cheio de desejos e ansiedades. Ela ali, parada em um canto. Eu aqui, vendo-a sem ter coragem de tocá-la. Não sabia o que fazer. Rodei pela sala, procurei um livro. Terminei na geladeira. Eu tomei uma cerveja e ela ficou no canto, como que me olhando, rindo de meu nervosismo.

  Tomei coragem. Fui até ela, decidido. De um gesto só, tirei-lhe a roupa. Foi um susto. Ela estava do mesmo modo. Não reagiu, não sorriu, não protestou, não faz nada, nadinha mesmo. Toquei em seu corpo, acariciei sua face e nada. Ela não reagiu. Ficou muda, como a deixei.

  Eu e ela, no passado, fomos amantes, companheiros, confidentes. Noites e noites conversávamos a sós. Ela ajudou-me a afogar mágoas. Tantas vezes serviu-me de porta-voz, sem nada dizer, sem protestar. Tomou conhecimento dos meus amores, ajudou-me a conquistar outros e curtiu fossas comigo.

  Não era ciumenta a minha amante, não dizia nada. A sua submissão era total, completa e, mesmo assim, eu a abandonei. Afastamos-nos sem despedidas. Ela estava em casa, sozinha, e se foi sem me dizer adeus. Acho que estava zangada. Não a encontrei mais e já tinha perdido a esperança de reecontrá-la um dia. Se tivesse magoada, até compreenderia. Não lhe dei a devida atenção, não lhe cuidava bem. Acho que até gostou do que aconteceu.

  Agora ela estava ali, muda, em um canto. Não me pediu desculpas e nem deu explicações. Eu aqui, sem saber o que dizer depois de tê-la deixado completamente nua. Era ela, a mesma, a mesma que se foi um dia. Estava do mesmo modo como eu a tinha visto no último dia.

  Tomei outra cerveja, sozinha. Ela não bebe. Criei coragem novamente. Romeu para seu lado. Sentei-me na banqueta e a puxei para bem perto de mim. Precisava acariciá-la mais, sentir cada uma das partes de seu corpo. Sim. Precisava ser mais carinhoso, afinal, tantas vezes ela foi carinhosa para comigo, me permitiu extravasar todo meu sentimento, foi confidente de meus desejos e minhas angústias. Era o mínimo que poderia exigir.

  Novamente usei de violência, como tantas vezes fizera no passado. Imediatamente a sala encheu-se de barulho. Era o mesmo barulho de alguns anos. Eu introduzi os dedos em suas partes e as teclas foram se movimentando como da última vez em que estivemos juntos.

  No papel preso ao cilindro, alguma coisa começava a tomar forma. Como no passado, estávamos nos tornando amantes outra vez, eu e minha máquina Olivetti, línea 98.

  Graças ao tempo, suas partes estavam intactas. Felizmente o ladrão que a roubou não tinha por ela o mesmo sentimento de cumplicidade que eu tenho. Por isso, eu e minha Olivetti estamos a ser os mesmos amantes de antes!



A LEI DO SILÊNCIO


  Mudança é uma coisa que nunca gostei de fazer. Depois que entro em uma casa, em um apartamento, um esconderijo qualquer, decido sempre que será minha morada definitivo. Dela, somente sairei para o cemitério. Infelizmente, como quase tudo que acontece hoje no Brasil, minhas decisões são sempre contrariadas, principalmente porque ultimamente não tenho morado no que é meu, mas no que é dos outros. Sendo assim, até colocar um quadro na parede se torna difícil, afinal, a parece não é minha e o dono pode não gostar.

  Mas, o que acontece comigo não é comparado ao que aconteceu com um amigo meu. É bem verdade que, de mudança em mudança, eu já perdi muitas coisas, até um pouco de sono. Também perdi momentos de discussão com a equipe de embalagem, de montagem, de arrumação. Outras coisas já perdi também, mas fazer o quê? Em mudança, tudo pode acontecer.

  Como eu dizia o que aconteceu comigo não é comparado ao que aconteceu com um amigo meu músico dos bons. Ele decidiu mudar com toda a família para um apartamento. Tinha uma bateria musical completa e diversos outros instrumentos musicais aposentados há algum tempo porque chegou a conclusão que iria morrer de fome se fosse viver de música.
- É no décimo terceiro andar, disse ele ao homem da transportadora.
  O barulho da mudança começou a incomodar os vizinhos, que passaram a olhar com desconfiança todo o processo de descarga. Desceu a geladeira, a cama, as cadeiras, a mesa, a máquina de lavar, a máquina de escreve, gato, cachorro, papagaio etc...etc... Até aí, tudo bem.

  Começaram a descer, então, os instrumentos musicais para espanto dos vizinhos; bateria, prato, piston, atabaque, violão...

  Tudo no elevador rumo ao 13º andar. Os outros vizinhos abriram suas portas e ficaram olhando. Uma vizinha, assustada, ligou para o síndico, denunciando o novo vizinho, que ainda não tinha sequer aberto a porta de seu apartamento.
- Ele está cheio de instrumentos musicais e fará uma festa aqui dentro para inaugurar o apartamento – lascou a vizinha para o síndico, que subiu o prédio apavorado, afinal, seu condomínio era dos mais tranquilos.
  Meu amigo estava sentado quando o sindicou entrou no apartamento adentro, sem a menor cerimônia.
- E o senhor é o dono de tudo isso aqui? – quis saber, apontando para os instrumentos musicais.
- Sim, sou o dono!
- O senhor já conhece as regras do condomínio?
- Sim, conheço...!
- O senhor sabe então que aqui é proibido gato, cachorro e papagaio...!
- Sim, sei, mas já estou providenciando para que eles...
- O senhor sabe que também é proibido ouvir música depois das 22 horas?
- Sim, sei de tudo e prometo que não farei qualquer barulho, nem antes e nem depois das 22 horas...Mandarei de volta os animais!
- Agora estamos entendidos, arrematou o síndico.
- Olhe, só tem uma coisinha: avise aos seus vizinhos que não costumo fazer barulho, mas costumo andar dentro de casa e isso pode incomodá-los. Avise também que eu fumo...e a fumaça pode fazer algum barulho. Avise também que eu costumo escrever depois das 22 horas e o barulho da máquina pode incomodá-los também um pouco.
  Estavam naquele momento, síndico e morador do 13º andar apresentados e entendidos. O síndico zeloso e o morador barulhento!



DETETIVE ENGANADO

(para Carlos Costa Filho)

  Dono da situação o garotinho foi chegando para junto da mãe que, nervosa, procurava algum objeto na cozinha.
- Pode deixar que eu acho, mãe.
- O que você está fazendo com esse meu óculos de sol, menino. Vá já guardar isso, anda, vai logo!
- Ah, mãe, se eu for guardar não tem graça. Eu tenho que ficar com ele para poder achar o que a senhora procura.
- Onde já se viu isso, de óculos para achar o que eu procuro! O que eu procuro você sabe.
- Não, a senhora diz para mim e eu acho.
- Ah, mãe a senhora não vê que eu estou disfarçado?
A mãe perdeu a paciência e fez o garoto guardar os óculos. Ele guardou, amuado e se recolheu ao quarto. Ficou alguns minutos quieto e voltou para a cozinha, onde encontrou a mãe às voltas com a sua busca infrutífera.
- Eu não disse que a senhora não ia achar? Só eu me disfarçando e fingir que eu sou um detetive...

Calmamente, o menino voltou para o quarto, ligou a televisão e, novamente, com os óculos escuro sobre os olhos, ficou assistindo um filme de desenho animado.

  Meia hora depois, inspirado no filme que assistia, o menino apanhou a peruca de sua mãe, vestiu uma blusa que lhe alcançava os pés e retornou a cozinha.
- Deixa eu procurar, mãe, deixa?
- Vá já tirar essas coisas. Onde já se viu um menino de peruca, óculos desse jeito e acima de tudo usando uma blusa de seu pai...
O menino começou a chorar.
- Não chora, meu filho. Você também está me provocando!
- Então deixa eu procurar...
- Está bem, eu deixo...
- E o que é que a senhora está procurando?
A mãe não respondeu. Já havia esquecido o que procurava.
- Ah, mãe, assim não vale. A senhora tem que me dizer.
Embaraçada e não querendo desapontar o garoto, que lhe proporcionava uma grande graça vestido daquele modo, imitando o que deveria ser um detetive, a mãe olhou para o chão e notou que o menino estava descalço.
- Lembrei meu filho, era a sua sandália que eu estava procurando. Era isso, a sua sandália. Eu queria levá-la até você. Ache-a para mim, tá?
Sentindo-se enganado e, por não gostar de calçar sandálias, o menino ficou amuado, jogou a peruca, o óculos e a camisa no chão e respondeu:
- Ah, mãe, assim não vale! E saiu correndo, trancou-se no quarto e a mãe ficou rindo da situação.



O CRIME DO QUARTO

  De um lado para o outro ela caminhava rápido. Tinha medo de morrer. A desgraçada merecia morrer e eu estava lá para matá-la. Busquei as armas, grandes, pequenas, muitas armas. Eram necessárias. Mas ela deveria morrer devagar, deveria sofrer, sofrer muito. Não podia desmaiar, tinha que sofrer.

  Seus olhos eram frios, de ódio. Os meus estavam fixos. Não podia perder um só de seus movimentos. Ela era traiçoeira, violenta. Eu poderia morrer antes dela. Estávamos lá, só nós dois prontos para matar ou morrer.
- Reza desgraçada. Tens poucos minutos. Reza enquanto é tempo, reza enquanto ainda tens tempo...! Ela não ouvia, acho que seus ouvidos estavam tampados. Ou essa desgraçada é surda? Devia ser, continuou caminhando de um lado para outro, da porta para a parede, da parede para a porta, tentava subir pela parede. Era impossível, caia todas às vezes.

  Meu sadismo era tamanho, dava sorrisos fechados daqueles que mal se movimenta um canto da boca. Nunca mais aquela desgraçada ia repetir o que tinha feito comigo. As marcas ainda estavam visíveis e doíam muito. O susto tinha sido grande demais.

  Ela merecia morre, mas decidi dar um tempo, ela parou. Parecia que nossa guerra havia chegado ao fim. Fui até a cozinha, tomei água e voltei ao quarto. Ela ainda estava acuada no mesmo canto, do mesmo modo como sabendo que estava prestes a ser assassinada.

  Com muito nojo, segurei uma de suas pernas e puxei-a. Ela estava agora sem uma perda, mas ainda andava assim mesmo com a que lhe restou, a desgraçada e era rápida demais. Interrompi seus passos, ela tropeçou em meus pés e retornou para o canto como querendo me fuzilar com os olhos.

  Preparei a arma, adicionei muito veneno. Ela tinha que morrer lentamente para pagar por todos os seus pecados. Onde já se viu me dar um susto desses? Não, tinha que dar-lhe o troco; ela via tudo e continuava parada. Sabia que ia morrer a qualquer momento. Não havia saída, não adiantava gritar, pedir socorro. Não adiantaria nada. Eu ia matá-la com minhas próprias armas. Tapei-lhe a saída. Ela teve tempo para se arrepender tudo e me pedir perdão, mas não fez. Era durona demais para fazer isso...

  Não sei se chorou. Nem sei nem se ela chora. Nunca vi. Apertei a arma, disparei o gatilho e ela caiu morta, mortinha da silva de pernas para cima. Ainda cambaleou alguns segundos mais não resistiu ao tiro que lhe dei. Apertei a arma pela segunda vez e disparei de novo. Será que essa desgraçada já morreu? Tentei ouvir seu coração para ter a absoluta certeza, ela estava dando seu último suspiro, rodopiou e caiu, ficou ainda se mexendo um pouco mais no fim estava morta. O que devo fazer agora para encobrir meu crime tão odiento. Já sei:
- Maria, traz um saco de lixo, uma vassoura e uma pá, preciso retirar a desgraçada dessa barata do meu quarto! Nunca mais ela vai assustar outra pessoa!



TEMPORAL NO CAMPO


  Havia chovido muito na noite anterior e o dia amanheceu feio. Ao longe, no horizonte, onde normalmente o arco-íris costumava aparecer e onde minha avó insistia em dizer que havia um pote de ouro enterrado, coisa que só ela sabia como era possível isso, via-se nuvens pesadas de chuva. Dentro de casa, os outros dormiam calmamente, aproveitando o tempo um pouco frio.

  Do alto do barranco, olhando-se para baixo, rumo ao rio, tinha-se impressão que o mundo estava acabando. Montes de capins, imensas toras de madeira e restos de tudo o que se encontravam às margens, desciam rio abaixo. Não havia um só motor navegando. Não havia um só canoeiro que se aventurasse a remar.

  No campo, o gado permanecia todo recolhido e nem mesmo o cachorro se aventurou a sair de casa. A égua “Estrela”, comumente criada solta e a primeira a pastar no campo, permanecia quieta, parecendo que adivinhava algo ruim, muito ruim.

  As carregadas nuvens que se via no horizonte ao longe começavam a tomar outras formas. Era manhã, mas parecia que era noite. Estava tudo muito escuro e começou a relampejar. Trovões foram ouvidos e até os pássaros que costumavam comer em uma goiabeira que havia ao lado da casa, se calaram e alguns voaram.

  Era, com certeza, o início de mais um temporal. Dentro da casa, a mãe cuidava de agasalhar os pequenos. Era um quarto só, onde crianças de ambos os sexos e com idades variadas se amontoavam umas redes, outras em colchões soltos e outras no chão de madeira, forrado com pano velho.

  A mãe, pobre coitada, acostumada a ver violentos temporais no campo, daqueles que arrancam zinco de casas de madeira, viram motores, quebram canoas e atrapalham pescarias e caçadas, começou a ficar preocupada. Puxou uma reza triste. A vela, tantas vezes útil, não conseguia permanecer acesa porque, pelas frestas das paredes, passava um vento forte e frio. Isso não tinha importância.

 Todos unidos, de mãos dadas, rezavam forte. Não sabiam exatamente porque estavam rezando, mas acompanhavam a reza da mãe e acreditavam que era a única maneira de escapar com vida do temporal. O silêncio, pelo lado de fora da casa, só era quebrado mesmo pelos trovões e a escuridão, vez ou outra rasgada pelos fortes relâmpagos. O barulho do vento também se fazia sentir e ouvir pela casa, que começou a tremer, sacudir como se estivesse se saltando, sendo arrancada.

  Não havia relógio. Ninguém sabia ao certo as horas. O temporal veio e a reza se tornou mais forte. Um raio partiu a casa ao meio; o alumínio da cobertura da casa foi jogado longe. Não adiantava falar nada. Ninguém se fazia ouvir ou entender. Só a reza era importante.

  Cobertos com o que encontravam, passaram o temporal. Quando tudo terminou, se olharam se abraçaram e choraram. Estavam todos bem, salvos e vivos. O mundo começava a nascer de novo, a a partir de uma nova casa que precisaria ser construída.

Deus havia escutado as rezas? Talvez, talvez...



MEU GENERAL (para Carlos Daniel)


  Como em um passe de mágica, de simples bonecos de plástico eles passaram a ser soldados e índios. Os cavalos ganhavam vida e as flechas voavam por sob as cabeças dos inimigos. A batalha estava formada e não haveria trégua enquanto os soldados ou os índios ainda vivessem.

  Eu, sentado no sofá da sala, assistia a tudo como um mediador da questão. A cada soldado ou índio que caíssem fuzilados ele, meu filho, queria saber se o inimigo havia ou não morrido com dignidade.

  Dentro do castelo armado, soldados se escondiam por toda parte, até no alto das muralhas, sem contar com os que, mais ousados, protegiam o portão de entrada, armados de espingardas, revólveres e até metralhadoras.

  O general, digo meu filho, conseguiu a proeza de comandar soldados e os índios, ao mesmo tempo. A cada soldado que morria ou a cada índio que caísse ferido ou morto, o meu pequeno comandante dizia uma palavra de consolo enquanto mudava a posição estratégica de combate dos dois rivais comandados por um só general, meu filho.

  A batalha estava interessante. Com a boca ele fazia o barulho dos tiros e os chiados das flechas. Também pedia para eu tivesse cuidado para não ser atingido no meio do fogo. Dados vários minutos da inocente brincadeira, quando pensei que a guerra já estivesse terminada, meu filho, o general, sentou-se entre os índios e os soldados e estabeleceu uma conversação de paz.
-Você aqui – puxou o que tinha entre os soldados sido eleito por ele como comandante – pede desculpas ao chefe aqui. Foi você quem começou a guerra, sentenciou meu filho, o general. O pobre do soldado não tinha mesmo como dizer que foram os índios que atacaram primeiro, pediu desculpas. Aí, meu general, o meu filho, chamou o índio e determinou que ele fumasse o “cachimbo da paz” com o soldado.
  Não houve acordo e a guerra começou de novo. Os soldados receberam dois fortes aliados, o “Capitão América”e o “Rambo”, o segundo com uma potente metralhadora e o primeiro com seu escudo azul e branco. Não havia chances para os índios, pensava eu. Mas havia sim. O líder da batalha e comandante em chefe dos dois lados da guerra decidiu colocar o He-Man a favor dos índios.

  Eu, atônito, admirava a imaginação fértil do comandante, o meu filho. Fiquei mais impressionado com o seu comandamento, sua destreza e dei boas gargalhadas quando meu filho saiu do quarto calçando uma bota de soldado. Definitivamente, ele estava disposto a comandar e massacrar, não sei se os índios ou os próprios soldados.
  Naquele momento, vendo tudo aquilo calado, quieto, concordando com tudo e respondendo ao que ele queria saber, inclusive se na guerra acontecia aquilo que ele, meu filho, imaginava – eu confesso que não sabia; nunca estive em uma guerra - senti saudades da minha infância, quando não havia esses brinquedos e não havia televisão, com filmes que hoje tanto inspiram para as crianças para a violência.

  Ah, quanto a batalha, o general decidiu terminá-la empatada...Já estava ficando chata, disse-me ele. Foi a decisão mais sensata e correta para a contenta.



MEU AMIGO, ADEUS

(para Afrânio de Castro, poeta, pintor e boêmio)


  Não fui ao teu enterro, meu amigo. 


  De há muito eliminei de minha vida os enterros e os velórios, porque quero lembrar como vivos todos os meus mortos, como vivo quero ser lembrado pelos meus verdadeiros amigos, ao morrer. Se os vejo mortos e os acompanho a enterros, tenho a impressão de que morri também e que devo ser enterrado junto.

  É inútil o passeio; eles vão se perdendo a cada passo e eu me recuso a acompanhá-los. Não devo seguir um caminho que eu não sei para onde vai. Por isso, não fui ao teu enterro, meu caro amigo. Eu preferi que seguisses sozinho para a tua última morada e a tua nova vida. Em mim, ficou a lembrança de tua vida e dos bons momentos que passamos juntos.

  Sim, meu querido amigo, devem ter ficado em teu leito de morte os nossos inúmeros encontros, nossas garrafas de cervejas jogadas, nossos problemas lamentados, nossas felicidades divididas. Por que eu deveria tirar isso de minha cabeça para te ver como se estivesses dormindo?

  Com certeza, em algum lugar estará agora, meu amigo. É um lugar novo, que nunca tivestes o prazer de conhecer antes. Talvez não se pareça com nada do que acostumamos a ver; e aí, tudo poderás. Talvez até rever teus conceitos sobre a vida e a morte. Eu sempre te dizia que a morte era o início da vida; tu me dizias que a morte era o fim de tudo. Quem tem razão, afinal, meu amigo: eu ou tu?

  Deve ser diferente onde estás, talvez ouvindo músicas suaves tocadas em harpas pelos anjos, ou a doce postura de um monge ou, ainda, colhendo flores mágicas, transformando-as todas em perfumes, em ternura; ora distante, ora perto, deixando transparecer felicidade e alegria por todos os seus poros...

  Caro amigo, que saudades deixastes...saudades nos teus parentes e tantos a quantos, como eu, tiveram o direito, a satisfação e o prazer de compartilhar de tua alegria. Havia sempre um sorriso para dar por trás do teu rosto moreno, bigodes fartos e gestos lentos. Era algo diferente de se sentir, porque não havia em ti os traços de quem tivesse estudado tanto; se muito, tinhas o curso primário ainda. Mas o que adiantaria isso para se construir uma amizade e uma convivência sincera entre duas pessoas que se gostavam se admiravam pelo que eram e não pelo que poderiam ter sido.

  Hoje, meu amigo, de ti em mim ficará somente a saudade e a certeza de que há outra vida n’álgum lugar, como sempre acreditei. Um dia estarás de volta entre os teus porque a morte, como já disse, é somente o começo de uma nova vida. A vida não termina com a morte; ela só começa!

  Um dia, amigo, quando menos esperares, todos os teus amigos estarão aí contigo, do teu lado. À noite, voltaremos a nos encontrar, tocar violão, cantar serenatas e tomaremos um porre com a permissão de todos os poetas, das estrelas, da luz...Tenho tantas coisas para te contar em uma mesa de bar, meu amigo! Muitas aconteceram depois da tua partida!

  Talvez eu leve comigo um violão dentro do meu caixão quando também me for deste mundo!

  Sei que terei um bom cicerone nesse novo mundo para onde logo partirei. E nós dois, talvez, possamos escrever as primeiras palavras das crônicas comprometidas com a minha e a tua vida que sempre desejamos fazer. Lembra disso? Talvez...



MINHA EMPREGADA, ADEUS


  Decidido a mudar de vida, coloquei anúncio no jornal e encontrei a empregada. Foi a primeira que me apareceu: um tipo meio deficiente, com seus mais de 40 anos. Imaginei que tivesse responsabilidade suficiente para tirar de mim a responsabilidade sobre tudo dentro de casa. Sabia cozinhar, limpar, lavar roupa na máquina...Era só o que eu desejava. Nada mais.
  Logo no primeiro dia de trabalho, senti que não era exatamente uma empregada como eu queria. Ao sentar à mesa para o almoço fui obrigado a comer carne sem sal e uma salada para regime ou coisa parecida.
- Mas, dona Maria, não foi isso que eu pedi – disse-lhe eu, ao que ela respondeu de costas e caminhando rumo a cozinha: - É, eu sei, mas acontece que eu estou fazendo regime e não posso comer outra coisa. Nem comida com sal.

  Bem, eu tinha que lhe dar razão, afinal, eu não tinha perguntado quais eram os hábitos de minha nova empregada.

  Dias depois, levei um amigo e decidi servir-lhe uma bebida. Chamei a empregada e lhe pedi um copo. Ela, imediatamente, trouxe-me um, na mão e entregou-me sem a menor cerimônia. Eu a olhei com raiva, meu amigo percebeu e tirou por menos, dizendo “essas coisas acontecem”. Depois, doma Maria me disse:
- Também, porque o senhor não me avisou de nada, de que traria um amigo seu para comer e beber na sua casa? Eu, na casa em que trabalhei antes, andava sempre de avental azul e um chapéu na cabeça. O senhor não me comprou nada disso...!
  Engoli em seco o que ela me disse e tirei por menos. Os dias, afinal, se passavam rápido e eu tinha a esperança de poder contratar outra empregada, diferente da que eu tinha contratado. Enquanto não contratava, continuei comendo carne e salada sem sal porque minha empregada estava de dieta e vivendo só como ela queria que eu vivesse. Até um dia que ela falou ao serviço. Foi um Deus nos acuda. Não sabia onde ela havia guardado as coisas do café da manhã; no almoço, nada fiz. Felizmente foi só um dia de falta.
  No natal, pedi que ela preparasse o peru. Estava uma delícia. Eu, sozinho, logicamente, não comeria um peru inteiro. Convidei uns amigos, mas mesmo assim ainda sobrou peru. Então, mandei que o resto fosse colocado no forno do fogão para o jantar. Não tinha mais nada!
- Dona Maria, cadê o peru?
- Eu levei para meus cachorros em casa?
- Seus cachorros, dona Maria?
- É, meus cachorros. Eles são muito luxentos e só comem comida fina, coisa boa!
  Minha paciência estava chegando ao fim. Até que em um dia de sábado, decidi voltar mais cedo para casa, no início da tarde, como nunca fizera antes. Estacionei meu carro na garagem e encontrei a casa toda fechada. Parecia tudo normal, não fosse o molho de chave da porta da frente da casa enfiado na fechadura pelo lado de fora.

  Tomei o molho de chave, coloquei-o no bolso e entrei. De início pensei que dona Maria estivesse ido na casa de algum vizinho ou coisa parecida. Mas não, ela estava no quarto assistindo televisão. Entrei e ela nem se tocou. Tomei banho e ela lá, vendo o programa dela. Só via a luz azul de sua televisão por baixo da porta. Tive que pedir licença à empregada para poder trocar de roupa. E ela, lá assistindo entretidamente ao programa de televisão.

  Devidamente trocado, chamei-a para perguntar-lhe sobre o molho de chaves.
- Não sei!
- Como a senhora não sabe? A senhora ficou com as chaves!
- Não sei onde larguei as chaves...

  Não aguentei e explodi. Disse-lhe um bocado de grosserias e ela ficou calada, ouvindo tudo atentamente. Quando lhe entreguei as chaves que estavam no meu bolso, ela disse:
- Calma, calma. Fique tranquilo. O senhor não correu o risco de ser roubado porque ladrão não rouba a casa de qualquer um não. Ele primeiro telefona para saber se tem alguém na casa. Se não tiver ninguém que atenda ao telefone, aí é que ele vem e rouba...
- Como a senhora sabe de tudo isso...?
- É porque foi assim que fizeram na casa de minha última patroa. Eles telefonaram como ninguém atendeu, eles vieram e fizeram a mudança!
  Explodi de uma vez! Antes só do que como uma empregada que fica em casa só para atender telefones e dizer se a casa pode ser roubada naquele dia ou não!



MEU POBRE NATAL


  E lá vinha o menino franzino, ladeira abaixo, empurrando alegremente com a ponta dos dedos um carrinho imaginário, feito com uma simples tampa de lada de leite. O seu carrinho, a contar pela alegria do menino e pelo movimento rápido de suas pernas, deveria ser muito rápido. Ele passou por mim e levantou poeira.

  Era aquele menino franzino o próprio retrato pintado do meu primeiro Natal, sem presentes, sem lembranças, sem abraços, só com um imaginário carrinho de tampa de lata de leite a correr pelas ruas empoeiradas do meu bairro. Eu, como aquele garoto, também já fora feliz um dia com tão pouco...ou quase nada!

  E o menino voltou correndo com seu carro imaginário e veloz, novamente levantando poeira ao meu lado. Os cabelos louros sujos do garoto reluziram no sol forte do meio-dia. Não me contive às lembranças do passado e chamei o feliz menino de uma juventude sem horizonte.
- Meu filho, quem lhe deu esse carrinho?
- Foi meu pai...
- Seu pai...perguntei assustado. No meu tempo, um simples carrinho imaginário daquele era dado por Papai Noel.
- É, meu pai disse que o Papai Noel não podia trazer o meu presente e por isso ele me fez este...
  O garoto, então feliz, baixou a cabeça e começou a chorar. Afaguei seus cabelos com os dados, tomei seu carrinho nas mãos e, como na minha infância, criei coragem para dar umas voltas com ele. O garoto sorriu e me acompanhou em uma rápida carreira. Confesso que aquele gesto foi o suficiente para o garoto voltar a sorrir, e eu também.
- Onde está seu pai? Voltei a perguntar, mas novamente o garoto não respondeu. Também se recusou a falar qualquer coisa sobre o paradeiro de sua mãe, se estava trabalhando, de férias, ou fazendo outra coisa...

  Deixei que ele dessa uma volta em seu carro, enquanto o meu permanecia estacionado em um lado da rua. Deu vontade de chorar. Aquele garoto era a minha própria infância pobre e feliz: vazia, inocente e com muita imaginação. Como eu no passado, ele também ainda acreditava em Papai Noel e nas estórias do sapatinho e da meia na janela; nas boas notas do colégio, enfim, em tudo que os pais de hoje inventam para justificar os presentes que dão aos filhos.

  Dentro da male de meu carro havia um carro à pilha que havia comprado para meu filho. Chamei o garoto, abri a mala, peguei o carrinho e lhe ofereci como um presente. Mas ele não aceitou.
- Por que você não quer meu presente?
- Esse carro aí é a pilha, não é...?
Respondi que sim.
- Pois é. Não posso aceitar o seu carro porque esse meu aqui funciona sem pilha também. E continuou correndo com seu carro de tampa de lata de leite, muito feliz da vida.



ADEUS...MEU UIRAPURU

(para Francisco Guedes de Queiroz, tribuno e ex-deputado por 26 anos)


  Aí está, meu Uirapuru. Acabou. É o fim. O coração, tantas vezes usado em favor do amor e tanto amor que ele conservou ao longo de todos esses anos, te pregou uma peça e parou, deixou de trabalhar, te levando do nosso meio. Não cantará mais meu Uirapuru e eu me sento à máquina para te dar este até sempre...e ao teu coração imenso que há vários dias se tinha rebelado contra ai e, como uma frágil flor em um sol forte, ele não resistiu à mania de querer morrer e morreu.

  Acabou, meu uirapuru. Deves descansar em paz e não te preocupes com o silêncio do teu canto. A “Tribuna do Povo” não ficará silenciosa e no Tribunal do Júri, onde tantas e tantas vezes sempre surpreendestes até mesmo os teus mais ferrenhos críticos, ninguém mais esquecerá o teu canto. É assim, meu uirapuru...

  Não sei ao certo quem te chamou pela primeira vez de uirapuru, mas não esqueço as expressões do amigo Arnaldo Carpinteiro Péres elogiando-te a cada vez que terminavas o teu trabalho no Tribunal do Júri. Fostes, és e serás sempre respeitado, admirado e querido. Eras um guerreiro e não fortes derrotado. A morte é incapaz de matar os verdadeiros homens. Estes resistem ao tempo e são admirados por gerações. Será assim contigo, meu uirapuru.

  Teu canto, ao longo de tua vida, foi escutado nos mais diferentes locais, sempre afinado, sempre justo e não mudavas nem quando subias os degraus do Palácio Rio Negro para, por horas, dias, assumires o Governo do Amazonas. Era humilde em tudo e, se rancores guardava de alguém, nunca o permitiu que ele se tornasse mesquinho, frio, calculista... É, meu uirapuru, tu eras assim!

  Não fui ao teu enterro meu uirapuru. Prefiro ter-te como vivo e lembrar sempre de tua presença, entrando em todos os locais e cumprimentando a todos como se estivesses em tua casa. Eu prefiro guardar na minha memória o som de tuas palavras sempre com muita firmeza, acreditando na vida e na honestidade dos homens. Não queria ver-te de olhos fechados. Daqui a pouco eu posso estar ao teu lado e também não quero que meus amigos me tenham como morto. Se vivo não posso ser lembrado, morto não quero sê-lo, meu uirapuru.

  Eu espero que teu coração não te tenha feito sofrer muito e que a tua morte não tenha sido doída. Que tudo tenha sido rápido como eu sempre sonho e desejo para mim. Ah, coração, o que fizestes ao meu uirapuru; como agora poderei ouvir o seu canto em forma de palavras? Como ficará a “Tribuna do Povo”?

  Creio ter sido teu excesso de trabalho e confiança na vida e em si mesmo que o tenha levado para cantares no Reino de Deus!

  Vá em paz, meu uirapuru, meu amigo, cante seu canto alegre aos homens imortais e, meu uirapuru, se voltares a pagar de cantar, mesmo que seja onde estás agora, não me deixes saber. Já foi triste demais eu saber que não mais existia entre nós, meu uirapuru do júri, Francisco Guedes de Queiroz!






CINZAS...!


Cores se repetem, se investem, se vestem e se permitem ver; depois descansam jogadas em qualquer canto, de qualquer parede, de qualquer casa. Deixam de ser a razão da ilusão: são a ilusão sem razão de alguém que trinou em brincar enquanto pôde...e descansou no final, como guerreiro derrotado pelos tiranos!


CINZAS...!


Cores de sangue correm n’algum lugar, investindo contra a estrutura moral ou imoral de quem o tirou de quem o perdeu. É o protesto mudo, surdo, cedo de quem não tem forças, voz, sentimento e consegue mover montanhas, só com a cor. É carnaval. É sangue. É suor. É ilusão.


CINZAS...!


Já não brinca o assalariado da esquina, nem concorda com o patrão o empregado da fábrica. Não há mais um sorriso nos lábios da família: falta farinha, falta, arroz, falta feijão. Mas, ah Deus, quase esqueço, ontem foi carnaval, Já não correm pelas calçadas os filhos do que perdeu sangue, nem do bêbado que morreu de alegria, nem do alegre que deixou tristeza. Não. Nada aconteceu. É cinza...!


CINZAS...!


Corpo cansado, jogado de lado, pintado de ontem, fantasiado de tudo, espera o momento de o sol raiar...Espera o momento para acordar, entrar na realidade, sacudir a poeira da avenida, tirar a fantasia do clube, seguir para o trabalho e encarar o patrão mal humorado, a mulher mais carinhosa, o filho mais raquítico. Ah, mas como pode? É carnaval!


CINZAS...!

Cinzas, cinzas correm na enxurrada e descem pelo esgoto mais próximo. Cinzas levam os confetes, as serpentinas, o amor da menina, os gemidos da virgem, o corpo da donzela, a super pureza da bela...Levam as promessas de amor, os momentos de paixão. Deixam, ah, como deixam, um filho carnavalesco, desfilando à avenida da vida. Ah, me desculpem, mas era carnaval!


CINZAS...!


É um dia qualquer, de uma quarta-feira qualquer, que acostumei a chamar de cinzas para não chamá-la de outra coisa. É o dia do final, é a queima do total, é a razão espiritual de quem não teve espírito sempre igual. E o fim do começo. É o começo que mais termina porque no próximo ano tem mais, e começa tudo de novo e termina tudo. É cinza!

CINZAS...!

Como são gostosas essas cinzas. Escondem os restos das máscaras, desmascaram o que sempre foi fantasia, deixam à vista tudo aquilo que sempre foi...Há um chefe no gabinete, há gabinete para um outro chefe e uma prisão para um outro chefe, chefe do banco, ladrão que rouba, menino filho de pai que rouba, chora. Mas lamentar para quê? Era tudo carnaval!




MEU CARO SILVA

(para o Dr. Raimundo Silva, no dia de sua posse)

  Aí está, meu caro Silva...você aí, sentado, todo de toga, com inteligência jurídica se espalhando pela sala, com o seu ar de jovem amigo dos dias e das noites, pronto para dar uma sentença. E eu aqui, do outro lado da sala, lembrando de nossos velhos tempos, dos dias em saíamos para os balneários, em que tomávamos nossas cachaças, em que tínhamos nossas namoradas...Tempos bons aqueles, hem Silva? É uma pena que o tempo passa e nós vamos ficando mais velhos, deixando para os mais novos as nossas brincadeiras do passado...talvez para os nossos filhos, não é, Silva?

  E agora, Silva, como é você? Eu sei que você ainda é o mesmo Silva de nossa juventude perdida entre um passado recente e a realidade presente. Eu também sei que o seu caráter honrado, sério, não mudou. Mas agora, todo de toga, você é outro Silva. É um juiz que julga que decide que dá sentença, que diz o que está certo e o que está errado. E o que é certo ou errado, hem Silva? Você lembra, meu caro Silva, nós nunca questionávamos sobre estes assuntos no passado, se sabe por quê? Porque não precisávamos deles. Porque vivíamos em nossos próprios mundos; hoje, nos dois, eu e você, decidimos a sorte dos outros. Você como um juiz do trabalho; eu como jornalista. Como nossas vidas mudam, não é companheiro?

  Acredito meu caro Silva, que os motivos que impelem os homens a causarem dano a outrem e procederem mal para ele, violando as leis, são a maldade e a intemperança. Com efeito, meu caro Silva, já de disse, alguma vez, que possuir vícios é exemplo, o avarento relativamente às riquezas; o intemperante relativo aos prazeres do corpo; o afeminado relativamente aos prazeres fáceis; o covarde relativamente aos perigos, pois os covardes abandonam por medo, seus companheiros de perigos; os ambicionistas deixam-se arrastar pelas honras...mas você não é assim!

  Hoje, meu caro Silva me permite lembrar de uma vez em que eu e você, viajando para sua Itacoatiara, eu ao volante de seu Chevette, conversávamos sobre assuntos diversos e, ao subirmos uma pequena ladeira, observamos uma luz forte, que parecia vir do alto. Assustamos-nos e você falou com ar de nervosismo: “ é um disco voador”. Não. Não era, mas somente um carro que vinha em sentido contrário. Isso prova meu caro Silva, que você é gente como todos nós e é simples, com direito e errar, mas você será um juiz!

  Mas, por outro lado, meu caro Silva, você se preocupou certa vez com um pequeno passarinho que fazia ninho em uma árvore baixa em seu balneário. E por que você se preocupou? Porque você, como homem, também se preocupa com as coisas mais simples do mundo. Enfim, você como todos nós, meu caro Silva, uma pessoa comum.

  Você com sua toga, meu amigo, é superior a todos, é tratado por excelência e á respeitado. Você ouvirá acusados e acusadores, mas não esqueça nunca, meu caro juiz, que todas ações do homem devam de causas exteriores ou de que causas que lhes são peculiares, que logicamente dependem do acaso ou da natureza.

  O que é justo ou injusto foi definido de duas maneiras, relativamente às leis e às pessoas. Você, a partir deste momento, meu caro Silva, é o juiz. Decida, então, excelência.





REI POR UM DIA

  Ah, maninha, se eu fosse rei, por um dia apenas, decretaria feriado nacional e anunciaria a meus súditos como é grande meu amor por você. Decretaria que é permitido amar, mesmo que dois amores, desfilar em praça pública com você seria permitido, seria até permitido olhar e admirar a lua, a minha lua, a minha Luana. Eu a transformaria em um ato cívico nacional!
  Também decretaria o direito de ter direitos, mandaria os corruptos para o xadrez, fecharia o Congresso Nacional, pagaria todas as nossas dívidas; Ah, maninha, se eu fosse rei, por um dia apenas, não haveria mais desemprego, nem trabalhadores, nem patrões. O dinheiro seria extinto, a inflação desapareceria e não faltaria comida nas mesas.

  Talvez, maninha, eu me transformasse em um ditador pela força do hábito e baixaria decretos-leis. O primeiro decreto, maninha, iria criar um imposto para ser pago apenas pelos que não amassem como eu amo você. Se isso não resolvesse, baixaria um segundo decreto tornando o amor obrigatório. Ah, maninha, como seria lindo!

  As escolas seriam ampliadas e o amor também se tornaria matéria obrigatória. Não haveria mais provas para medir a capacidade de ninguém e só passaria de ano o aluno mais aplicado no amor ao próximo. As universidades seriam extintas, afinal, hoje elas não servem para nada e também não serviriam em meu reino. Elas também não ensinam a matéria do amor!

  Os campos, maninha, seriam sempre cheio de flores se eu fosse rei por um dia. O direito de ser feliz seria de todos. Os muros das casas seriam derrubados; não haveria mais separação entre as pessoas e todos podiam entrar e sair da casa de todos sem desconfiança. Os ladrões, maninha, eu os mandaria para o xadrez e também lhes ensinaria os segredos do amor. Os policiais, esses e os mandaria também para o xadrez porque eles também não entendem nada de amor ao próximo. Os delegados seriam rebaixados e todos teriam que se submeter de novo a uma prova em que o amor seria a única questão. Os carros seriam proibidos de circular porque eles também não produzem o amor; mas fumaça e poluição.

  Se já estivesse chegando ao final do dia, decretaria que o sol teria que passar mais uma hora com seu clarão ou que a lua chegasse mais cedo para encher de luz os casais apaixonados. Assim, teria tempo de tomar um banho e sair às ruas para admirar as obras de meu reino.

  Contudo, maninha, se as minhas decisões não fossem cumpridas, se eu não conseguisse resolver todos os problemas do meu reino, se o povo não estivesse satisfeito, eu baixaria um novo decreto e modificaria tudo o que já tivesse decretado antes. Aí os generais se revoltariam, assumiriam suas patentes, dariam um golpe de estado e me jogariam para apodrecer na prisão.

  Mas, mesmo assim, maninha, eu permaneceria feliz e amando você, afinal, tudo isso eu faria em nome de nosso amor!





RASGA MORTALHA


  No Varre-Vento, lugar pequeno mais aconchegante onde morei, à noite menino não assoviava para não chamar cobra e não brincava com fogo porque se urinaria na cama. Meio dia, o rádio ligado na “Crônica do Dia” do radialista Josué Claudio de Souza, sua voz-rosto-corpo, ninguém podia tomar banho no rio; o bicho poderia atacar. Terminada a “Crônica”, o almoço já estava posto à mesa, o banho era liberado, menos para as meninas menstruadas. Essas tinham que tomar banho dentro de casa ou de cuia, porque o boto podia atacar e elas engravidariam.

  Nas leis severas de dona Lucila, minha avó, tudo tinha uma explicação. Assoviar à noite era uma forma de chamar cobra para dentro de casa; brincar com fogo fazia a criança se urinar na cama, da forma que fosse. Os bichos (cujos nomes nunca os revelara com medo talvez que desacreditassem de suas leis e ordens), ao meio dia, também se banhavam no rio e estavam com fome. No caso dos botos, eles poderiam ser atraídos pelo sangue das meninas.

  De tudo, porém, o que mais me chamava a atenção eram as ordens de dona Lucila, quando sob nossa casa ou em cima da casa de alguém, passava uma ave conhecida popularmente por “rasga mortalha”. Geralmente ela passava por volta das 18 horas, sem fazer seu barulho característico de um rasgar de pano com seu canto, mas se ela cantasse por cima da casa, iria morrer alguém muito em breve naquela casa.

  Uma tarde, todos reunidos, tempo feio, a ave “rasga mortalha” passou, cantou e seguiu rumo ao sul. Dona Lucila ficou em silêncio por vários minutos, olhou para todos os que estavam reunidos na sala, fez o sinal da cruz e os mandou que começassem a rezar porque alguém morreria dentro de alguns dias.

  Morrer, quem iria morrer? Estavam todos bem, ninguém apresentava qualquer tipo de doença, nem uma gripe que fosse. Todos se olharam tristemente e o silêncio voltou a reinar na grande sala. Dia seguinte tudo correu calmamente, os protocolos do banho foram todos cumpridos, ninguém assoviou à noite, ninguém brincou com fogo e novamente, no final da tarde, a “rasga mortalha” passou sobre a casa deixando mais uma vez seu canto fúnebre.

  A triste notícia foi se espalhando rapidamente e três dias depois, muitos vizinhos, andando léguas à pé, de canoa ou à cavalo começaram a chegar. Muitos traziam velas, outros traziam bolachas, outros café, alguns até rezavam, tristemente, como se a oração fosse capaz de salvar o “escolhido”.

  Exatamente no quarto dia, ao meio dia, rádio de pilha se funcionar, dona Lucila descumpriu sua própria ordem e foi banhar-se no rio, sob os olhos de todos. No primeiro mergulho, não voltou à tona. Todos correram para a beira do rio, olharam em todas as direções e a única coisa que viram foi um boto preto boiar logo à frente, seguindo para o maio do rio. Depois de quase um minuto embaixo d’água, dona Lucila subiu à tona.
- Eu estava tentando enganar a “rasga mortalha”, fingindo-me de morta.

  Não se conseguiu ou não; mas o certo é que a “rasga mortalha” nunca mais cantou seu canto fúnebre sobre a nossa casa e a vovó Lucila morreu muito tempo depois, com mais de 70 anos de idade.



A VISAGEM...


  Ele, quando dobrou a curva do rio, levou um tiro de espingarda e caiu n’água. A canoa desceu suavemente e, até hoje, ninguém comenta o assunto.

  Sentado em uma cadeira de balanço, toda em madeira de lei, fabricada por ele mesmo, meu avô José Raimundo, homem nascido e criado em Varre-Vento, gostava de contar estórias que ouviu durante os vários anos que conviveu com seringalistas. Estórias e histórias, a verdade é que ele as contava muito bem, com muita ênfase que pareciam verdadeiras.

  A última delas, falava de um seringueiro que, depois de trabalhar por vários anos em um seringal e com um pequeno saldo a seu favor, coisa quase inédita em entre seringalistas e seringueiros naquela época, decidiu ir embora para casa. O capataz demonstrou preocupação.
- Bem, como você foi sempre um bom cortador de látex, leal todos esses anos vão mandar te pagarem tudo direitinho e ainda vou te dar minha canoa...

  E mandou pagar. O pobre coitado, com o dinheiro recebido, fez planos para rever sua família, sua mulher, seus filhos...e mudar-se definitivamente para a capital onde pretendia comprar um terreno e construir uma modesta casa com o pouco que tinha lhe restado. Na capital, talvez conseguisse matricular seus filhos em uma escola.

  Não conseguiu dar mais que algumas remadas e recebeu um tiro de espingarda pelas costas. Tombou sem vida e o dinheiro todo voltou para as mãos do patrão, que passou a se vangloriar do que havia determinado fazer. Seria um exemplo para os outros!

  Dessa para outras estórias, Zé Raimundo passava com grande rapidez e facilidade, balançando em sua cadeira de madeira. Ele só não gostava de falar do cemitério que existia no meio de seus pés de cacau. De lá, estórias também existiam mais ele não queria confirmar ou desmentir.

  Diziam, em Varre-Vento, que Zé Raimundo havia sido um exportador de cacau e até comentavam que em sua casa não tomavam café, só chocolate extraído de sua plantação, de forma artesanal.

  Verdade ou mentira isso, o certo que no meio de sua plantação de cacau havia um cemitério, umas cruzes e gente enterrada lá. Também comentavam que sempre aparecia “alma penada” dentro do Cacoal.

  Zé Raimundo desmentia isso tudo e preferia contar estórias dos seringueiros que eram assassinados sempre friamente. Matar seringueiros era igual a comer peixe: era todo dia. Todo dia um deixava de existir. “Eu não tenho medo dessas coisas de defunto voltar”, costumava dizer.

  Um dia, porém, Zé Raimundo quase morreu de susto. Com uma espingarda 12 sobre os ombros, foi para uma pescaria, sozinho e seu cachorro “Leopardo”. De cara, se sentiu perdido. Dava voltas e mais voltas e acabava sempre voltando para o mesmo local de antes. Era uma cobra grande que lhe tava encantando, por isso não saia do local, ele tinha certeza. Imediatamente virou a camisa e conseguiu quebrar o encanto da cobra e conseguiu sair do local. Mas decidiu não continuar a pescaria que fora fazer.

  Caminhando por dentro de seu Cacoal, não se apercebeu que estava próximo ao cemitério. O cachorro que o acompanhava começou a latir e, do escuro de baixo das folhas, saiu um vulto branco. Zé Raimundo gelou. Pegou a espingarda, atirou em rumo ao vulto várias vezes e ficou paradinho da silva no mesmo local como se uma estátua fosse. O vulto começou a se mexer e mais um tiro foi dado.

  Depois, apavorado, correu para casa e só parou quando a recebeu em seus braços minha avó Lucila.

  No dia seguinte, um grupo de homens voltou ao local e encontraram apenas um monte de furos de bala disparados pela espingarda de Zé Raimundo, em uma folha de cauaçu, verde de um lado e cheia de mofo branco pelo outro lado. Mais nada!





AS “BURRAS PRETAS”


  Toda a população do Varre-Vento – poucas famílias de incipientes agricultores, pescadores, caçadores eventuais que trabalhavam somente para o próprio sustento – só temia mesmo o estrago feito pelas“burras pretas”. Não importava a distância a que eram apontadas, canoas eram retiradas das águas, motores pequenos era amarrados com mais cordas e banheiros improvisados sob toras de pau no meio do rio, quase sempre desapareciam nas águas do Rio Solimões quando elas passavam.

  De onde vinham, o que faziam para serviam as “burras pretas”, era uma incógnita para quase todos do lugar. Muitos arriscavam palpites, outros preferiam contar estórias fantásticas sobre elas e muito poucos a identificavam como sendo embarcações rápidas, utilizadas pela Petrobrás no seu trabalho de deslocamento no interior, coisa que eu nunca pude confirmar também...

  O certo mesmo é que as “burras pretas”- acho que eram assim que se chamavam por terem um cor preta, causadas pela própria fumaça que expeliam – eram o terror de todos. Poucos muito poucos mesmo se aventuravam a enfrentar suas ondas. Um desses poucos que enfrentou suas ondas e quase morreu foi o “Zé Pretinho”. Ele entrou em sua pequena canoa, aos olhos dos amigos, e remou para o meio do rio. Uma onda mais forte tombou a canoa e ele quase morreu afogado.

  Geralmente as “burras pretas” navegavam ao longe das margens do rio, o que talvez fosse uma decisão para amenizar os estragos que faziam com o banzeiro. Essa providência, porém, não era suficiente. Normalmente as ondas produzidas por elas, eram suficientes para derrubar até pequenas árvores às margens do rio.

  Nunca esqueci um dia quando uma dessas “burras pretas” apontou ao longe. A filha do vizinho ao lado da fazenda de meu avô estava tomando banho no rio, completamente nua, protegida somente pelas paredes do banheiro construído sob toras de madeiras flutuantes. Eu, à margem do elevado do barranco, dei um grito forte e avisei que a ”burra preta” já estava muito próxima.

  Ela ouviu meu aviso e não se apercebeu que estava completamente nua e, apavorada, subiu o barranco rumo a sua casa, permitindo ver toda sua juventude e nudez de seus 15 anos ainda por serem completados dentro de mais alguns meses. Foi uma cena inesquecível!

  Hoje, “burras pretas” não existem mais nos rios do meu Amazonas. Suas estórias, e as estórias dos estragos que produziam, não foram nunca contadas e eu fiquei sem saber ao certo o que eram as “burras pretas”. Talvez fossem o que diziam que era, talvez fossem barcos para empurrar barcaças – eu nunca as vi empurrando nada – ou quem sabe eram barcos da Marinha.
A única coisa que eu sei é que um dia, uma dessas “burras pretas” me permitiu ver o corpo nu de uma mulher, quando nos cinemas de Manaus, ainda nem passavam filmes eróticos, principalmente para garotos de seis anos de idade. Eu fui o primeiro a ver, e ao vivo. Então, viva as “burras pretas” sejam lá para o que serviriam!




EXPLICANDO O POETA

( para Jorge Tufic)


  Deveis saber, senhora, quão difícil é penetrar no coração de um poeta apaixonado. Ele baila, dança, foge, corre, ama e desama em fração de segundos, mas permanece fiel à sua musa, à sua paixão, e jamais se permite a amores levianos, senão para satisfazer a curiosidade de seu dono. O coração de um poeta apaixonado, senhora, é como o coração de uma criança, está sempre pronto para ser infantil o suficiente para sorrir ao mundo e maduro o bastante para ter um legítimo amor, mesmo que só por baixo de seu imenso bigode que ostenta.
  Não estranheis senhora, quando o poeta se perder, por segundos apenas. E que seu pensamento vai mais além do que vossa sensível imaginação. Não interpreteis, portanto, à risca, essa fuga repentina. Ele volta e volta rápido, porque o poeta apaixonado é uma criança fácil de domar; basta dar-lhe um pouco de carinho, atenção e momentos felizes, mesmo que só por debaixo de seu imenso bigode.
  Entendeis gentil senhora, que o poeta ama a tantas pessoas quando o for a sua vontade de amar, mas somente a uma ele dedica amor, carinho, permanência, respeito e profundo e afeto real. Às outras, senhora, o poeta dispensa atenção apenas, não passando mais do que isso.
  Fostes vós, senhora, a eleita para ocupar a parte maior do coração do poeta de bigodes fartos. Não haverá outra a tomar o vosso lugar porque não há lugar para dois amores; apenas, para um. Deveis saber senhora, quão realista e, ao mesmo tempo, realista e imaginativo é o poeta. Ele parece estar presente ao vosso lado, por alguns instantes. Isso ocorre senhora, mas é o momento em que o poeta dá vida a sua imaginação.
  Lembreis senhora, do que um dia recebeis do poeta uma flor; não ganheis dele uma flor apenas, mas uma porção de rosas representadas por uma só. O poeta é assim. Ele parece pequenino, mas é grande em seus gestos, em suas ações.
Uma rosa, gentil senhora, é o maior símbolo para o poeta campista. Depois vem a lua, sua musa inseparável. Ah, senhora, esqueci de dizer que a lua vos rouba meu poeta, sempre, e leva o poeta e passar horas pensando na luz, imaginando quão bela é sua eterna amante, ela cravada no céu e ele parado na terra, sem poder abraçá-la ou tocá-la.
  Mas senhora não penseis que o poeta de bigodes fartos, parecendo uma andorinha que ele comeu e esqueceu de limpar as penas depois, vive só de imaginação; ele é realista, sabe encarar os problemas, sabe enfrentar a vida, principalmente, quando possui ao seu lado vosso infinito amor.
  Aconselho-vos, senhora, a aceitar o amor de meu poeta. Afinal ele só é diferente dos outros por ser mais puro e mais difícil de ser penetrado. Se vós conseguirdes isso, tereis para sempre um poeta do vosso lado; não para fazer versos e amar a lua. Tereis para sempre um poeta ao vosso lado não para fugir sempre e se deixar roubar por amores outros, não para se perder entre as noites; mas sim, para somente um homem comum, um homem com um farto bigode e um grande cavalheiro.
Ame um poeta, senhora, e tereis sempre uma vida de amor!